Identidade em risco

Fusões e parcerias reduzem custos para os fabricantes, mas trazem
ao mercado automóveis que não parecem justificar seu logotipo

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editor

O logotipo da Fiat está na frente, na traseira, no volante, assim como é assinada pela marca a calibração das suspensões para o piso brasileiro. Mas, ao dirigir o Freemont — lançamento da marca que avaliamos nesta edição —, não resta dúvida se tratar de um Chrysler. De fato, ele constitui uma "engenharia de logotipo", como dizem os norte-americanos, a partir do Dodge Journey já conhecido por aqui.

Apesar da intervenções pelas Fiats italiana e brasileira, o utilitário esporte tem toda a essência do grupo que os italianos adquiriram, e nem poderia ser diferente. O motor de 2,4 litros e o câmbio são da Chrysler, assim como foi todo o projeto do modelo, anterior à compra. Mesmo no interior, com um bonito painel que a Fiat diz atender ao gosto europeu (de fato, o antigo usado pela Dodge deixava muito a desejar), os traços norte-americanos estão por todo lado, do freio de estacionamento acionado por pedal à alavanca unificada à esquerda da coluna de direção, passando pelas trocas de marcha manuais da caixa automática feitas para os lados.

O que acontece com o Freemont é mais um efeito das fusões e aquisições de fabricantes, que têm acontecido com frequência mundo afora e trazido resultados tanto à indústria quanto ao consumidor. Para ela, a indústria, há a vantagem de reduzir custos pelo compartilhamento de projetos e a produção de componentes em maior escala. Nós, os consumidores, algumas vezes saímos ganhando com isso; outras, não.

O que se pode perder com as fusões? A identidade dos carros. Um dia, cada marca adotava em seus modelos um conjunto de características que os fazia diferentes da concorrência. Fosse um motor "nervoso", que gostasse de alta rotação; fossem a posição e o funcionamento dos comandos; fossem o acerto da suspensão mais para firme ou para macia, a direção mais rápida ou mais lenta, os freios mais imediatos ou mais "esponjosos".

Embora muitos desses elementos possam ser ajustados de maneira específica pelas marcas para atender a seus princípios e sua tradição, os carros que resultam de parcerias e fusões não raro privilegiam a identidade de um fabricante em detrimento do outro ou dos outros. Ou mesmo tentam misturar características e acabam em um meio-termo que não atende nem a um lado, nem a outro.

Pode parecer antiquado falar nisso no atual cenário globalizado, em que carros são projetados para atender a gostos os mais diversos, de um norte-americano que dirige em largas avenidas e mal se preocupa com o consumo até um japonês ou europeu que se aperta pelas ruas, desfruta estradas excelentes e paga muito caro pelo combustível, passando por um brasileiro que enfrenta pisos entre os piores do mundo e... também paga muito caro pelos combustíveis, como bem sabemos. Mas, para os aficionados por automóveis, o assunto é plenamente atual.

Os menos jovens devem se lembrar do Volkswagen Apollo e do Ford Versailles, frutos da Autolatina — associação entre as marcas que vigorou entre 1987 e 1994, no Brasil e na Argentina — derivados do Ford Verona e do VW Santana, na ordem. Além de alterações visuais por fora e por dentro, as empresas fizeram intervenções técnicas como bancos mais macios, no caso do Versailles, e câmbio mais curto e amortecedores mais firmes, no caso do Apollo, para tentar seguir o que cada marca valorizava e oferecia em outros modelos.

Deu certo? Não. Em uma época em que a identidade do fabricante estava bem mais evidente aos brasileiros, pelo pequeno número de marcas e modelos, tanto Apollo quanto Versailles foram recebidos com restrições pelos clientes tradicionais de cada uma. Nem mesmo a dupla Logus/Pointer da VW, desenvolvida depois a partir do Escort e com modificações mais abrangentes — não havia painéis de carroceria em comum com o modelo de origem —, conseguiu emplacar. E muito disso pode ser atribuído à descaracterização do que um VW ou um Ford deveria ser.

Tudo, menos Chevrolet
Houve casos semelhantes mais tarde, apesar de não ter ocorrido outra fusão do porte da Autolatina na indústria local de automóveis. Quando a General Motors passou a importar da Argentina o utilitário esporte Tracker, ficou claro a quem o dirigisse que aquele não era um Chevrolet, apesar da gravata-borboleta na grade — de fato, era um Suzuki Grand Vitara, com o detalhe de ter usado motores a diesel da Mazda e da Peugeot. Não havia no modelo qualquer elemento, visível ou perceptível, que se esperasse encontrar em um carro da GM. É difícil saber o quanto isso influiu, mas o Tracker nunca obteve êxito.

Pouco depois vieram os vários Fiats — do Palio ao Stilo, passando por Idea e Punto — com o motor GM de 1,8 litro, fruto da associação das empresas em âmbito mundial. A mistura resolveu um problema para a Fiat (substituir o motor 1,6 de 16 válvulas importado da Itália em um momento de dólar supervalorizado) e trouxe benefício à parcela dos consumidores que procura apenas um motor simples, robusto e com bom torque em baixa rotação. Só que a Fiat virou as costas para os amantes do tempero esportivo sempre associado aos motores italianos, que gostam de "girar" com um ronco que entusiasma... como o 1,6-litro substituído.

A questão, claro, não fica restrita ao mercado brasileiro. A Audi poderia não ter chegado aonde chegou sem o suporte da VW, mas seus melhores carros são aqueles que menos compartilham componentes com os "primos mais pobres". Caso típico foi a primeira geração do esportivo TT, limitada em comportamento dinâmico por usar a plataforma comum a Golf, New Beetle e até um prosaico Skoda. Em contrapartida, quando a VW fez sua versão simplificada do Audi A8 — o Phaeton —, não conseguiu sucesso porque o preço foi julgado excessivo, sobretudo nos Estados Unidos, para um carro com logotipo tão popular.

A absorção por um grande grupo também maculou a identidade de outras marcas. Que o digam os fãs da Alfa Romeo, que tiveram de abrir mão da tração traseira — tão associada a seus carros quanto ainda é hoje aos da BMW — depois da compra pela Fiat. Como se não bastasse, o casamento do grupo com a GM impôs aos "alfisti" um filho bastardo, o uso do motor Opel/Holden de 3,2 litros no 159, no Brera e no Spider, em lugar do carismático V6 original da marca.

Na Jaguar, em que pese os avanços em qualidade durante o período de comando da Ford, a tração traseira foi abandonada no modelo de entrada X-Type, que usava a plataforma de um carro "plebeu", o Ford Mondeo. A empresa até aplicou tração integral nas versões iniciais, para tentar evitar o comportamento de um carro com tração dianteira e melhorar suas chances diante de clientes tradicionais, mas não conseguiu passar da metade do volume de vendas anual que projetava.

Não menos marcante é o caso da Citroën, adquirida nos anos 70 pela Peugeot e que desde então vem perdendo a forte identidade do passado. Embora ainda produza modelos com estilo ousado e suspensão hidroativa, vários de seus carros poderiam rodar com o logotipo de outra marca sem causar surpresa — o que jamais aconteceria com qualquer automóvel de seu período independente. E o desenho do atual C5, por mais bonito que seja, está mais para alemão que para francês.

Parece inevitável que as fusões e parcerias continuem a surgir, mesmo com o fracasso de algumas das mais relevantes do período recente, como a GM-Fiat e a DaimlerChrysler. Mas, enquanto foca um olho nas vantagens financeiras, cada empresa deve manter o outro em sua tradição, sua identidade; em síntese, aquilo que a faz especial e diferente de todas as outras.

Não havia qualquer elemento, visível ou perceptível, que se esperasse encontrar em um carro da GM. É difícil saber o quanto isso influiu, mas o Tracker nunca obteve êxito.

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Data de publicação: 13/8/11

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