O transplante e o risco de rejeição

Como na medicina, a indústria deve se cercar de cuidados para que um
motor fornecido por outra marca seja bem-aceito em seu automóvel

por Fabrício Samahá

Em questão de semanas, a Fiat quase extinguiu de sua linha nacional o uso do motor de 1,8 litro adquirido da General Motors, a ex-sócia em âmbito mundial em um casamento desfeito em 2005. Começou pelo Punto, seguiu pela linha Palio e, por enquanto, terminou na Idea — restou o Stilo, que talvez mantenha o motor "estrangeiro" por mais uns poucos anos até dar lugar ao esperado sucessor, o Bravo.

Não se trata aqui de comparar o motor que saiu com os dois (de 1,6 e 1,8 litro) que entraram, o que tem sido feito nas avaliações dessas novidades. O que se nota é que afinal, depois de oito anos do início da implantação do propulsor GM, quase toda a linha Fiat voltou a ter motores com sua identidade, seu modo de operar — mesmo que as unidades FPT sejam evoluções do motor Tritec usado pela primeira geração do Mini da BMW. E esse fator, para quem vê num automóvel bem mais que um meio de transporte, tem importância.

A parceria que se rompe na Fiat não foi a primeira, nem deverá ser a última em nossa indústria: fabricantes usam motores de outras marcas por diferentes motivos, sejam associados ou não em um mesmo grupo. Quando a Peugeot começou a fabricar o 206 em Porto Real, RJ, em 2001, não tinha em sua gama europeia de motores uma unidade de 1,0 litro com alta potência específica como a da concorrente, já que no Velho Mundo nunca houve o injustificado benefício tributário até esse limite de cilindrada (leia o editorial anterior). A solução foi adquirir motores da Renault — ela mesma, a rival de tanto tempo —, o que durou até que a Peugeot adotasse a própria unidade de 1,4 litro, em 2003.

Também em 2001, um lançamento argentino trouxe-nos outro caso de rivalidade sob o capô: o utilitário esporte Chevrolet Tracker chegava com um motor turbodiesel da Mazda. A causa da estranheza foi que a marca japonesa tinha 34% de suas ações controladas pela Ford, logo a mais tradicional adversária da GM no mercado original, os Estados Unidos. Por outro lado, a Suzuki — fabricante do Tracker que o vendia como Grand Vitara até sair do Brasil, pouco antes — mantinha parceria no Japão com a Mazda, cedendo modelos para que esta os vendesse com seu logotipo. O Mazda Proceed Levante, por exemplo, era o próprio Grand Vitara. O Tracker logo trocou de motor, que continuou vindo de fora: da Peugeot.

Bem antes disso, houve no Brasil a fusão da Volkswagen com a Ford na Autolatina, que durou de 1987 a 1995 e resultou na permuta de motores e até de carros inteiros (o Ford Versailles era um Santana e os VW Apollo, Logus e Pointer eram derivados do Escort, mas esse é assunto para outro editorial). Em 1989 o motor AP-1800 da VW ganhou os cofres de Escort e Del Rey, trazendo-lhes desempenho bem superior, enquanto o Gol recebia a unidade CHT da Ford — renomeada AE-1600 — e se tornava mais econômico, mas sem o brio anterior.

Se o motor VW nos Fords foi bem recebido, a não ser pelos mais puristas, houve muitas críticas à unidade Ford no Gol. A troca nunca foi feita para o mercado argentino, embora a associação entre as empresas também vigorasse por lá. Em 1993 o Gol vendido aqui voltou a ter motor "de casa" na versão 1,6, mas o 1,0 permaneceu o AE até 1996, já depois da dissolução do casamento. Vale lembrar que o próprio CHT ou AE não era, em sua origem, um Ford: surgiu na Renault, como o Ventoux do Dauphine, e foi crescendo em cilindrada de 845 até 1.555 cm³. É que foi de um projeto da empresa francesa que se originou o Corcel, em 1968.

Foi também naquela década, em 1994, que o longevo Toyota Bandeirante abandonou o motor Mercedes-Benz para usar um da própria fábrica. E, como no caso do Gol-Ford, houve ganhos e perdas: a unidade japonesa era mais moderna, suave e potente em alta rotação, mas oferecia menos torque em baixos regimes e fazia esperar menor durabilidade que o "indestrutível" motor da marca alemã. Criaram-se duas correntes entre os fãs do valente utilitário, cada uma adepta de um tipo de propulsor.

Fabrício Samahá, editor

Carros fora de série
Quem sempre usou motores de outra marca foram os fabricantes de carros "fora de série", empresas pequenas e sem os vultosos recursos necessários para desenvolver e produzir o "coração" de um automóvel. O antigo boxer arrefecido a ar da VW motorizou tudo o que se possa imaginar, de esportivos como o Puma a jipes e furgões como os da Gurgel, em meio a uma infinidade de marcas. Os 1,5, 1,6 e 1,8 "a água" da mesma marca estiveram em Miura, Puma, Hofstetter e outros. Houve os que recorreram às mecânicas do Chevette (caso do Avallone, réplica de MG), Opala seis-cilindros (Puma GTB, Santa Matilde e vários outros), Maverick V8 (Glaspac, réplica do Cobra) e até do Fiat 147 (os esportivos Farus e Dardo).

Há também casos em que um mesmo motor equipa veículos de marcas diversas, sem estar vinculado a qualquer dos fabricantes. A International passou a fabricar no Brasil em 1995 uma unidade turbodiesel de 2,5 litros, similar à usada na Inglaterra pela Land Rover, que equipou tanto o S10 quanto o Ranger e o F-1000 — havia pequenas diferenças de calibração e pelo uso de resfriador de ar apenas nos picapes da Ford. Anos depois, esses modelos receberam novos motores de fornecedores externos, como é comum no segmento a diesel: o do S10 da MWM (que também esteve no Nissan Frontier de geração anterior), e o do Ranger, da International (que já fornecia o mesmo para o jipe Troller antes da compra desta marca pela Ford). Em 2005, contudo, o grupo International adquiriu a MWM, marca que foi a única a permanecer no Brasil.

E é bom que se saiba: comprar motores de terceiros não é expediente exclusivo da indústria nacional. A GM norte-americana, mesmo com toda sua gama de unidades de seis cilindros a gasolina, foi buscar na Honda o V6 de 3,5 litros usado anos atrás no Saturn Vue, utilitário esporte que, em sua geração posterior, seria nosso Chevrolet Captiva. Outro V6 da Honda, há mais tempo, esteve sob o capô dos carros ingleses da Rover durante uma parceria entre os fabricantes.

Por outro lado, nasceu na GM o V8 a gasolina de 3,5 a 5,0 litros (da divisão Buick) que impulsionou por muito tempo os utilitários da Land Rover, sendo vendido pela marca inglesa para pequenos fabricantes como Triumph, Morgan e TVR. Outras unidades da GM equiparam modelos da Jeep, caso do Wagoneer com um V8 de 5,7 litros e do CJ com um quatro-cilindros de 2,5 litros. Mais tarde, a mesma Jeep adotou um turbodiesel da sócia Mercedes-Benz no Grand Cherokee. Unidades V6 da Mitsubishi também equiparam diversos carros da Chrysler.

Há ainda os desenvolvimentos em conjunto, como o da Ford com a Yamaha para o motor do Taurus SHO. Ou o de BMW e Peugeot Citroën para o 1,6-litro que vem tanto no Mini quanto nos 207 (versão francesa), DS3 e outros modelos do grupo PSA. Ou ainda a chamada Aliança Global para Fabricação de Motores, que envolve Chrysler, Hyundai e Mitsubishi e obtém unidades de 1,8 a 2,0 litros usadas pelas três.

Como se vê, fornecer motores, permutá-los e comprá-los de outros são práticas consagradas mundo afora, mesmo que possam dar margem a críticas. Para quem recorre a outro fabricante para esse elemento tão importante do automóvel, um cuidado importante é garantir que ele atenda plenamente aos objetivos do modelo, que seja tão bem-aceito por um cliente exigente quanto seria um motor da própria marca.

Como em um transplante de coração, todo o cuidado deve ser tomado para não haver risco de rejeição do novo órgão pelo corpo que o recebe.

Quando o Toyota Bandeirante abandonou o motor Mercedes-Benz para usar um da própria fábrica, criaram-se duas correntes entre os fãs do valente utilitário.

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Data de publicação: 14/8/10

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