Quando querem enganar você

De especificações a garantias e preços, alguns fabricantes
recorrem a manobras questionáveis para convencer o cliente

por Fabrício Samahá

O dicionário Houaiss define marketing, em uma de suas acepções, como "conjunto de ações, estrategicamente formuladas, que visam influenciar o público quanto a determinada ideia, instituição, marca, pessoa, produto, serviço, etc.". Essa palavrinha inglesa tão consagrada em nosso dia a dia — como substituí-la por "mercadologia", talvez sua tradução mais adequada? — tem relevância cada vez maior em mercados como o de automóveis, em que a percepção do cliente se torna decisiva na compra.

Assim, nada mais natural que os fabricantes dedicarem grande esforço para um bom trabalho de marketing, o que inclui eficiente divulgação do produto à imprensa e uma bem planejada campanha de publicidade. O problema — para quem compra, não para quem vende — é quando esse esforço recai em manobras questionáveis, quando a verdade dá lugar a uma meia verdade, quando o objetivo de vender leva a tentar convencer de que dois mais dois não são quatro, mas cinco ou mesmo seis. Surgem então as pegadinhas do marketing. Reuni algumas aqui.

> Potência. Qualquer um tem a noção de que um carro mais potente — com mais "cavalos", ou cv — oferece desempenho superior e lida melhor com situações como subidas, ultrapassagens e carga total. Mas não é sempre assim: a potência máxima conta apenas parte da história. Ela mostra só o que o motor pode fazer se levado àquele regime de rotação, que está perto do máximo em que pode funcionar. Na prática, é preciso saber quanto dessa potência está disponível nas faixas de rotação em que o carro será usado a maior parte do tempo — entre 2.000 e 3.000 rpm, por exemplo, e não a 5.500 ou 6.000. Se não houver um gráfico de curva de potência como os que publicamos nas avaliações completas, uma forma de comparar esse quesito é pelo torque máximo (quanto maior, melhor) e pelo regime em que ele aparece (quanto mais baixo, melhor).

É assim que se percebe, por exemplo, que o motor de 1,6 litro de um Gol de 15 anos atrás, com 76 cv a 5.500 rpm e 12,3 m.kgf a 3.500 rpm, oferecia respostas bem mais ágeis que o de 1,0 litro de um Classic atual, com 77 cv a 6.400 rpm e 9,5 m.kgf a 5.200 rpm, ambos com gasolina
— e, no entanto, a potência máxima é quase igual. Como para muita gente esse é um campo desconhecido, o argumento dos cv fala mais alto. Não é por outro motivo que muitos fabricantes dedicam toda a atenção à potência, em uma verdadeira guerra contra a concorrência para vencer por 1 ou 2 cv. Baixas e médias rotações? Ora...

> Tamanho. Distinguir os modelos em faixas de tamanho nunca foi fácil, mas está ficando mais complicado. Tem sido frequente que um carro menor, com a distância entre eixos ampliada, tente competir com os de segmento superior. Foi assim com o Vectra atual, que ganhou 9 cm em relação ao Astra; com o C4 Pallas, aumentado em 10 cm diante do C4 hatch; com o Linea, com 9 cm a mais que o Punto nessa medida; e com o City, 4 cm maior que o Fit em entre-eixos. Com isso, os médio-pequenos Astra e C4 ganharam porte — ao menos no sentido longitudinal — para passar por médio-grandes, enquanto o Punto e o Fit, que são carros pequenos, assumiram nas versões sedã o tamanho de um médio-pequeno. Essa manobra de "esticar" o automóvel ("carro-salsicha", já disse um amigo jornalista) permite ao fabricante oferecê-lo como se pertencesse a uma classe superior e, portanto, tentar emplacar um preço maior. O problema é que muitas vezes a largura permanece a do segmento inferior, e isso o consumidor percebe dentro do carro.

> Garantia. Um carro com garantia mais longa é um produto de melhor qualidade, certo? Em teoria, sim. Na prática, pode não ser. A conta que o fabricante faz para definir o prazo de cobertura considera, de um lado, a probabilidade de ocorrência de defeitos que levem a substituições por conta da fábrica, e de outro, o lucro obtido ao convencer o cliente a manter o plano de manutenção do veículo na rede autorizada por aquele período — condição, como se sabe, para que se possa pleitear qualquer reparo em garantia. Se essa conta resultar em um prazo de cobertura muito inferior ao da concorrência, há uma solução simples: reduz-se o intervalo entre as revisões e aumenta-se o leque de serviços obrigatórios.

É de onde surgem aberrações como a troca de óleo da transmissão (seja a caixa manual ou automática) do Hyundai Tucson a cada 30 mil quilômetros ou 36 meses, em condições normais, ou a cada 15 mil em "condições severas de uso", que não precisam ser tão severas assim — segundo o manual do modelo, basta o uso em curtas distâncias e com marcha-lenta prolongada, tão comum no dia a dia. Ou seja, uma troca de óleo de câmbio no utilitário sul-coreano chega a ser tão frequente quanto a do óleo de motor de alguns carros... O absurdo é ainda maior quando se observa que o padrão da indústria para o óleo de câmbio manual é o tipo que nunca precisa ser substituído.

Há ainda o caso híbrido, em que o fabricante amplia a garantia apenas para motor e câmbio (três anos na linha Volkswagen e no Peugeot Hoggar), mantendo a cobertura menor (um ano) para o restante do veículo. Para assegurar a garantia desses elementos caros, mas com baixa probabilidade de prejuízo nesse período, o comprador se mantém nas concessionárias por muito mais tempo do que pretendia, dado o hábito brasileiro de fazer manutenção — quando faz — em oficinas independentes. Genial.

Fabrício Samahá, editor

> A prova dos nove. Não se sabe se a coisa começou pelas lojinhas de badulaques de R$ 1,99, mas o número nove se espalhou pelos preços dos carros. É 59.990 para cá, 79.990 para lá, e o consumidor incauto tende a ler "50 e pouco" ou quando muito "79" em vez de 60 e 80, que são os verdadeiros valores camuflados pelo excesso de noves. A coisa chega ao ponto em que postos de combustível criaram o milésimo de real para vender, por exemplo, o litro de gasolina a R$ 2,499... Em protesto, no Best Cars esse tipo de manobra não chega até você: arredondamos os valores para cima, como de R$ 79.990 para R$ 80 mil.

> Bolsas infláveis. "Meu carro tem mais airbags que o seu": talvez não, pois depende da forma de contar. Marcas como Hyundai, Mitsubishi e (às vezes) Toyota consideram que duas cortinas infláveis, que cobrem a área envidraçada das quatro portas laterais e portanto protegem até quatro ocupantes, valem por quatro bolsas. Assim, se há cortinas e mais as bolsas frontais (duas) e laterais dianteiras (duas), a conta de seis vira oito na manobra de marketing. Muito perspicaz, mas fica a pergunta: se é assim que se contam as bolsas e como as frontais, laterais e cortinas protegem apenas quatro ocupantes, não deveriam valer só por quatro?

> Caçamba. Um belo dia alguém percebeu que, elevando a borda da caçamba de um picape, chegaria a um número mais polpudo em capacidade volumétrica do compartimento. Isso deu origem a casos como o do Chevrolet Montana, com uma caçamba tão alta que chega a prejudicar a visibilidade. O problema é que essa vantagem só se aplica a quem transportar líquidos ou farelos: para qualquer outra carga, o que importa são as dimensões da caçamba como comprimento e largura. Um volume de 1.100 litros não faz um picape mais útil que um com 900 litros se a caçamba deste último for 10 cm mais comprida e, assim, só ele puder levar uma moto com a tampa fechada.

> Juro zero. Esta é antiga, mas ainda leva muita gente na conversa. Em tempos de mercado desaquecido, ou quando o fabricante vai com muita sede ao pote na definição do preço sugerido (como aconteceu com o Honda City), anuncia-se o financiamento com taxa zero de juros. Sim, a empresa oferece a venda a prestação pelo mesmo valor da compra à vista. Almoço grátis? Claro que não: se isso acontece, é porque à vista se pode conseguir um valor bem inferior ao sugerido. No fim das contas, quem comprar financiado vai pagar mais, como é da natureza de qualquer negócio.

> Depenação. Talvez a manobra mais difícil de perceber: ano após ano ou até dentro do mesmo ano-modelo, o fabricante encontra como tirar mais "azeitonas da empada" — alusão à conhecida parábola da companhia aérea que, em busca de uma milionária redução de custos, eliminou uma das duas azeitonas que compunham as empadinhas servidas aos passageiros. E lá se vão itens de conforto, conveniência, acabamento ou mesmo segurança que para a fábrica custavam poucos reais, ou até centavos, mas tinham sua utilidade ou ajudavam a compor um bom produto. Afinal, R$ 1 economizado por unidade se torna R$ 100 mil em um modelo que venda 100 mil unidades no ano, por mais desprezíveis que R$ 100 mil sejam no faturamento anual da empresa.

Enquanto o departamento financeiro comemora, o consumidor paga o mesmo — raramente há redução de preço — por um carro pior e, como agravante, em geral só percebe depois da compra. O que se pode fazer nesse caso? Antes de comprar, acompanhar publicações como o Best Cars, onde a "depenação" não passa despercebida nas avaliações, e analisar a relação de equipamentos de série do automóvel para encontrar eventuais perdas, sobretudo quando já se possui um do mesmo modelo. Depois da compra, vale protestar ao fabricante (fácil hoje com a internet) para que ele não pense que saiu ganhando com a piora do produto.

Claro que nesse caso não cabe qualquer tipo de reparação ao cliente, salvo se faltar no veículo um equipamento que conste da relação atualizada de itens de série. Mas a opinião de quem compra pode influir — assim como em todos os casos que citei acima — para o fabricante pensar duas vezes na próxima tentativa de fazer a manobra questionável.

O número nove se espalhou pelos preços. A coisa chega ao ponto em que postos de combustível criaram o milésimo de real para vender, por exemplo, o litro de gasolina a R$ 2,499.

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Data de publicação: 5/6/10

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