Seis por meia dúzia

Governo norte-americano quer renovar o programa Cash for Clunkers,
que deu desconto a quem trocasse um carro velho por um novo

por Fabrício Samahá

Um dos temas mais polêmicos do mundo automobilístico em 2009 pode ganhar uma nova edição. Ray LaHood, secretário de Transportes do governo dos Estados Unidos, propõe que seja relançado este ano o programa de troca de carros velhos por novos, conhecido como Cash for Clunkers (dinheiro por tranqueiras, latas velhas ou outra denominação qualquer para veículos velhos e em mau estado), que vigorou entre julho e agosto no país.

Depois que as vendas de automóveis despencaram em razão da crise econômica iniciada em 2008, o governo norte-americano passou a buscar alternativas para impulsionar o mercado. Uma saída proposta por LaHood foi o Car Allowance Rebate System (CARS), sistema de desconto que dava um crédito de US$ 3.500 ou US$ 4.500 ao comprador de um carro novo em troca de seu veículo velho. Havia condições para participar do programa. O carro dado em troca deveria ter menos de 25 anos de produção, ser anterior ao ano-modelo 2002, estar em condições de rodar e com licenciamento em dia.

O novo veículo adquirido não poderia custar mais de US$ 45 mil — não é pouco, já que um BMW 335i sai a US$ 40.600 por lá — e, caso fosse um carro de passeio e não um utilitário, deveria fazer mais de 22 milhas por galão (9,3 km/l) na combinação de ciclos urbano e rodoviário da EPA, agência de proteção ambiental do governo. Como referência, um Ford Fusion 2,5-litros consegue média de 25 mpg, mas o V6 3,0 vai a 21 e por isso não pode participar. Para acentuar o caráter ecológico do plano, a "tranqueira" deveria ter consumo combinado pior que 18 mpg (7,6 km/l), sempre considerando a informação da EPA de quando o carro era novo. O crédito mais alto, US$ 4.500, valia apenas para trocas em que a melhora de consumo entre o carro velho e o adquirido fosse de 10 mpg ou mais, no caso de automóveis, e de 5 mpg ou mais para utilitários.

O programa previa ainda o destino das "latas velhas". Para evitar que fossem vendidos novamente, mesmo que em outros países (já que estariam registrados nos EUA como participantes do sistema), os carros seguiram para estações de serviço credenciadas e tiveram os motores inutilizados. Após a substituição do óleo lubrificante por silicato de sódio, que quando aquecido ganha a consistência de vidro, o motor era mantido em aceleração média até que fundisse e deixasse de funcionar para sempre. Depois disso, peças que não fossem de motor e transmissão podiam ser vendidas em desmanches até que o restante do veículo seguisse para sucata ou reciclagem.

Fabrício Samahá, editor

Questões no ar
O governo norte-americano considerou o programa um sucesso. O primeiro US$ 1 bilhão destinado aos descontos, que deveria durar até outubro, esgotou-se em apenas uma semana, levando a administração a pedir ao Congresso a liberação de mais US$ 2 bilhões. Comprometido o novo total em um mês, 690 mil compras de carros novos se concretizaram. A redução média de consumo — e em consequência das emissões de gás carbônico, CO2 — também foi comemorada. A média dos carros recolhidos era de 15,8 mpg e a dos modelos comprados foi de 24,9 mpg, um aumento de 58% em eficiência.

De fato, a maior parte dos veículos condenados pelo sistema era de utilitários esporte e picapes, com a lista encabeçada pelo Ford Explorer, seguido por Ford F-150, Jeep Grand Cherokee, Dodge Caravan/Grand Caravan (minivan), Jeep Cherokee, Chevrolet Blazer e Chevrolet C-1500 (picape). O carro mais adquirido por meio do plano foi o Toyota Corolla, seguido de Honda Civic, Toyota Camry, Ford Focus, Hyundai Elantra e Nissan Versa (nosso Tiida). Só em décimo lugar surge um utilitário, mesmo assim compacto, o Ford Escape.

Mas algumas questões ficaram no ar.

Primeira: apesar do crescimento de vendas do mercado como um todo durante a vigência do plano, os fabricantes norte-americanos não foram os mais beneficiados por ele. Um estudo da Universidade de Michigan apontou que, enquanto General Motors, Ford e Chrysler produziram 85% dos carros entregues em troca, foram responsáveis por apenas 39% dos novos veículos adquiridos. Já as marcas japonesas Toyota, Honda e Nissan, que representavam só 8% das "tranqueiras", participaram de 41% das vendas efetuadas. Além disso, parece natural que um programa como esse faça antecipar a compra de muitos que já pretendiam adquirir um novo carro, de modo que ao fim do estímulo as vendas tendem a ser mais baixas do que na ausência do plano.

Segunda: sob o aspecto ambiental, tão alardeado pelo governo, é difícil justificar que carros ainda em boas condições de uso sejam inutilizados e condenados ao sucateamento. Repare no contra-senso: abrevia-se a vida útil de um bem durável, que consumiu recursos para ser fabricado, apenas para que um novo — produzido com mais uso desses recursos — seja colocado na garagem que ele ocupava. Seria mais razoável se apenas "latas velhas" tivessem esse fim, mas US$ 4.500 compram bons carros nos EUA, como modelos médios e até de luxo ao redor do modelo 2000. Por esse ângulo, talvez o governo fizesse uso mais nobre se criasse um sistema de destinação desses carros a outros países.

Declan McCullagh, da Duke University, considera que a fabricação e o transporte de um carro emitem de três a 12 toneladas de CO2 até que ele chegue às mãos do comprador. Assim, com a redução de emissão pelos veículos trocados dentro do programa, o novo carro deveria ser usado por cinco anos e meio, em média, ou até nove anos no caso de utilitários para que aquela emissão se anulasse. E, pensando em maiores proporções, a substituição de 200, 400 ou mesmo 700 mil carros por outros com menores emissões pouco representa em uma frota como a norte-americana, de mais de 250 milhões de veículos.

Terceira: os US$ 3 bilhões gastos no programa têm de vir de algum lugar — naturalmente, do bolso do contribuinte norte-americano. Faz sentido subsidiar a troca de carros velhos por novos com o dinheiro público? E, de acordo com estudo do site Edmunds a partir do ritmo do mercado, apenas 125 mil das 690 mil compras não seriam concretizadas sem o incentivo governamental. Assim, à média de US$ 4 mil de desconto por veículo, cada uma dessas 125 mil unidades teria custado aos cofres públicos cerca de US$ 24 mil.

É difícil justificar que carros ainda em boas condições de uso sejam inutilizados. Abrevia-se a vida útil de um bem durável apenas para que um novo seja colocado na garagem que ele ocupava.

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Data de publicação: 16/1/10

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