O custo do desperdício

Governo norte-americano impõe limites mais severos de consumo
de combustível, uma medida que pode ter demorado demais

por Fabrício Samahá

Afinal, os norte-americanos começam a acordar para a necessidade de reduzir as emissões de gás carbônico (CO2) e o consumo de combustíveis fósseis pelos automóveis. Na última terça-feira, dia 19, o presidente Barack Obama anunciou novos padrões de Corporate Average Fuel Economy (Cafe), ou economia de combustível média corporativa. Lançado em 1975, o programa estabelece limites de consumo para a média dos veículos vendidos por um fabricante, de modo que permite a venda de carros mais beberrões desde que compensada pela de modelos mais econômicos.

Pelos padrões anunciados já em 2007, no primeiro enrijecimento de limites do Cafe em 32 anos, os fabricantes que venderem carros nos Estados Unidos deveriam obedecer à média corporativa de 35 milhas por galão (mpg) ou 14,8 km/l em 2020. Em março passado o governo federal estabeleceu um patamar menos remoto, para 2011, de 27,3 mpg ou 11,6 km/l na média entre automóveis (30,2 mpg, 12,8 km/l) e utilitários (24,1 mpg, 10,2 km/l). Esta semana foi a vez de escalonar como os EUA passarão de um estágio a outro, ao mesmo tempo em que um patamar pouco mais severo que o previsto para 2020 foi antecipado em quatro anos. Os veículos deverão ficar em média 5% mais econômicos a cada ano entre 2011 e 2016, ano em que o limite do Cafe já será de 35,5 mpg ou 15 km/l. De acordo com o governo, os custos de desenvolvimento pela indústria repassados aos consumidores serão recuperados por eles, no prazo médio de três anos, via redução de gastos com combustível.

Há quatro décadas os EUA estão entre os mais rigorosos no que se refere a emissões poluentes, tendo sempre à frente o estado da Califórnia, com sua altíssima relação de veículos por habitante. Já em 1970 o país cessou a adição à gasolina de chumbo tetraetila, elemento cancerígeno. Catalisadores e outros equipamentos de controle de emissões vieram na mesma década, dando muito trabalho às engenharias dos fabricantes e importadores, que tiveram de "amarrar" os motores para atender aos padrões em um tempo de eletrônica incipiente. Era comum naquele período que um modelo europeu, quando adaptado ao mercado norte-americano, perdesse 10% ou mais de potência. E até automóveis locais tinham versões específicas, menos potentes ou com calibração mais "mansa", para a Califórnia.

Desde os anos 80, os limites de emissões tornaram-se mais severos e houve até ameaça à produção de carros com motor a combustão. Em 1990, o Comitê de Recursos do Ar da Califórnia determinou que 2% dos modelos vendidos no estado, de 1998 em diante, deveriam ser do tipo emissão-zero e que o percentual chegaria a 10% em 2003, o que significaria o uso de propulsão elétrica. A decisão caiu, mas a indústria continuou a trabalhar em medidas para minorar a poluição — por determinação legal ou para atender aos anseios do consumidor. Até o gigantesco utilitário Ford Excursion, um mamute de 5,75 metros e 3,2 toneladas com motor V10 a gasolina de 6,8 litros, lançado em 1999 e muito criticado pelo desrespeito ao meio ambiente, emitia 43% menos poluentes que o permitido na época nos EUA.

Fabrício Samahá, editor

Gás carbônico
Quando se trata de CO2, porém, o assunto é outro. Ele não é considerado poluente, mas contribui para o aquecimento ambiental e por isso tem sido duramente combatido mundo afora. E, ao contrário do monóxido de carbono (CO) e outros gases tóxicos que saem (em volume cada vez menor, frise-se) pelo escapamento dos carros, não há como reduzir sua emissão pelo uso de catalisador ou outros dispositivos, pois um motor emite CO2 na proporção do que consome de combustível.

No momento em que Obama tenta controlar o gás carbônico, é preciso que se reconheça: foi justamente o lançamento do Cafe, 34 anos atrás, que plantou a semente para que os EUA se tornassem uma nação de ineficientes utilitários. Na ânsia de combater o alto consumo de gasolina pelos automóveis, o governo da época impôs limites bem mais severos para carros de passeio que para os pesados, uma distinção que se mantém clara ainda hoje. Sem poder continuar a produzir carros beberrões em grande volume e não encontrando boa aceitação a modelos menores e mais econômicos — não se revoga por decreto a lei da oferta e da procura —, a indústria viu sua salvação nos utilitários.

Veículos que até então se destinavam ao uso na zona rural passaram a ser apresentados como um estilo de vida, como um meio de estar "in" sem precisar pagar multas pelo desperdício de combustível. Foi a deixa para que o país adotasse picapes e peruas deles derivadas como transporte pessoal, a ponto de a série F de picapes pesados da Ford ser todo ano, desde 1981, o "carro" mais vendido naquele mercado — isso mesmo, vende mais que qualquer automóvel. O cenário não poderia ter sido mais favorável aos fabricantes, que desde então vendem veículos de tecnologia primitiva e construção barata por altos preços a ávidos consumidores.

O susto dos EUA com a alta do petróleo no ano passado, que levou o preço da gasolina a superar US$ 4,00 o galão (3,8 litros), aumentou o interesse por automóveis menores e por modelos de propulsão híbrida e fez cair as vendas de utilitários grandes — o que tem relação com a atual crise da indústria, mas este é outro assunto. Mas o efeito durou pouco, só até o preço despencar (agora a média nacional está em US$ 2,30 o galão ou R$ 1,23 o litro — isso de gasolina pura, não com um quarto de álcool como a nossa). Ao fim do ano, lá estava o Ford da série F de novo como líder de 2008, seguido pelo concorrente Silverado da GM e com o Dodge Ram em nono lugar. Só em quinto aparecia um carro mais econômico, o Corolla, perdendo para os grandes Honda Accord (terceiro) e Toyota Camry (quarto).

Dentro desse quadro, os novos limites do Cafe parecem ter demorado demais: os norte-americanos já deveriam ter reduzido fortemente o consumo e a emissão de CO2 há muitos anos. Quando os EUA chegarem a 15 km/l de média, em 2016, a União Europeia e o Japão já estarão trabalhando por um ano com cerca de 20 km/l. Pode ser coincidência, mas nesses países a gasolina nunca foi barata como no mercado norte-americano. Hoje alemães, italianos, belgas e finlandeses pagam ao redor de R$ 3,50 pelo litro, e os japoneses, R$ 2,50. Fica bem mais difícil ser adepto de utilitários ineficientes quando se tem, mais que a consciência ambiental, a pressão financeira do desperdício.

No momento em que Obama tenta controlar o gás carbônico, é preciso que se reconheça: foi o Cafe, 34 anos atrás, que plantou a semente para que os EUA se tornassem uma nação de ineficientes utilitários

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Data de publicação: 23/5/09

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