O que tem a ver um
italiano de Turim com um cearense de Aracati? E um alemão de
Wolfsburg com um goiano de Rio Verde? E um norte-americano de
Detroit com um rondoniense de Cacoal? Pouco, quase nada, não é
mesmo? Pois é em Turim, Wolfsburg e Detroit, cidades-sede de
poderosas indústrias automobilísticas, que boa parte dos carros que
circulam no Brasil começou a nascer. Mas quanto do DNA de nossos
Unos, Gols, Celtas é devido a suas “mães” gringas? Ajustados para
viver no trópico, entre nós, brasileiros, seriam esses modelos
dignos do padrão estabelecido por suas matrizes?
Sabemos bem que os carros citados são modelos que foram criados
especificamente para o Brasil e não existem nem em Turim, nem em
Wolfsburg, nem em Detroit. Bom isso? Ruim isso? Ambos? Vejamos.
Um lado bom: esses carros, como mencionado, foram criados para os
brasileiros e levam em conta particularidades de uso brasileiras.
Isso, em tese, quer dizer que suportarão nosso tipo malvado de
pavimentação e outros aspectos peculiares, além de ter a aptidão
para beber um combustível de origem vegetal, o álcool, ou um
combustível de origem mineral “batizado” com o vegetal na ordem de
20% pelo menos.
Um lado ruim: não sendo destinados a um mercado que valoriza a
segurança, acessórios como freios com sistema antitravamento (ABS),
bolsas infláveis, controles de
estabilidade e de tração e demais maravilhas eletrônicas,
orientadas a evitar acidentes e minimizar seus efeitos nocivos, não
constam do cardápio das versões mais simples — ou de nenhuma delas,
nos casos do Celta e do Gol de geração anterior. E há também uma
mais do que forte suposição de que as estruturas de tais carros não
estariam habilitadas a receber muitas estrelas de aprovação em um
eventual teste de colisão padronizado, algo comum aos veículos
vendidos aos povos de Turim, Wolfsburg e Detroit.
Seria bem lógico pensar que criar carros específicos para mercados
específicos é correto, imaginando que o que será levado em conta é a
necessidade do produto se ajustar a um determinado cliente e ao uso
que será feito dele. Até aí, morreu o Neves. O problema é que a
lógica dessa tal adequação acaba não sendo benéfica, mas sim nociva,
sob a forma de um empobrecimento derivado (também) das
particularidades do consumidor local. |
"O brasileiro
não liga"
Mais de uma vez, ouvi de gente que ocupa elevados cargos em
indústrias automobilísticas que brasileiro não liga para bolsas
infláveis ou freios ABS, mas sim para um sistema de áudio com
“trocentos” watts e chamativas rodas de alumínio. É assim mesmo?
Acho que ainda sim, mas gostaria de crer que isso mudará.
Acredito que com relação à segurança as fábricas jamais deveriam
deixar um equipamento de comprovada eficácia na prateleira como
opcional, assumindo assim uma clara tutela em prol do bem-estar dos
ocupantes de seus produtos. Mas entendo que há de se respeitar o que
o cliente deseja: se ele não quer pagar para salvar sua pele e a de
sua família, mas paga feliz para aparecer bonito “na fita” com suas
rodas e seu sonzão, fazer o quê? Democracia também é isso, aturar a
diversidade.
Todavia, enquanto ABS e bolsas infláveis são aquilo que se vê,
quantificável em dinheiro, economizar em termos estruturais é pecado
dos piores. Nosso Nissan March não é, como os citados, um carro
criado especificamente para o Brasil. Mesmo sendo parente próximo do
Micra em produção em mercados ditos de Primeiro Mundo e feito pela
sempre festejada e valorizada indústria japonesa, ele não tem o
mesmo capricho estrutural de seu parente vendido na Europa. E quem
diz não sou eu, mas o teste Latin NCap realizado com ele no fim de
2011, ao ser comparado ao que o instituto equivalente (Euro NCap)
fez com o Micra no Velho Mundo.
Idem com relação ao novo Uno que, apesar de novo, foi mal no teste.
E sei que seu parente italiano, o Panda, não é tão deficiente em
termos estruturais. Para o inferno vai também o Celta (e quem está
dentro dele), pois o econômico GM também faz rir (de nervoso!) pelo
meu resultado na prova de colisão. O mesmo ocorreu em relação ao
Gol, avaliado em 2010.
Ou seja, a vida de quem nasce em Aracati, Rio Verde ou Cacoal vale
menos que a de quem nasce em Turim, Wolfsburg ou Detroit. É isso que
se evidencia constatando que uma empresa automobilística, quando
projeta carros específicos para nós, o faz para nos dar aquilo que
queremos (rodas, sonzão...). Segurança? Ora, a segurança... E também
assustador é ver que os carros não projetados para nós, como o
citado March, trazem “tiques” de inferioridade explícita, pois
parece que nascer em Tóquio também vale mais do que nascer em
Jequié, Bahia.
Infelizmente, de onde quer que venhamos, enquanto valorizarmos o
supérfluo em detrimento de coisas mais importantes, o que teremos é
um produto inferior e inseguro. E, mesmo assim, caro. |
Economizar em
termos estruturais é pecado dos piores: nosso Nissan March não tem o
mesmo capricho estrutural de seu parente vendido na Europa |