Nem todo lançamento
de automóvel representa grande felicidade para nós, da imprensa. Vocês
devem imaginar que somos uns privilegiados por sermos os primeiros a
conhecer as novidades, dirigi-las e depois poder contar para vocês o
que achamos. Mas a grande verdade é que... sim, somos mesmo esses
privilegiados! Há que diga que, em vez de receber para fazer isso,
deveríamos pagar. A seu modo, quem pensa assim não deixa de ter certa
razão. Mas para ter o prazer de colocar o arroz e o feijão na mesa da
família, receber pelo trabalho é preciso, mesmo que tal trabalho seja
um grande prazer...
Exceções? Sim, claro, há sempre: quando o carro é ruim, ou quando não
há palpável novidade no modelo e escrever 20 linhas sobre ele é como
tirar leite de pedra. Às vezes acontece o oposto, de ir ao lançamento
de um carro e inesperadamente ficar empolgado — e isso nos faz ter
certeza de como é boa nossa profissão.
A semana que termina me premiou com um desses lançamentos deliciosos,
não porque se tratava de uma marca-lenda como Porsche, Ferrari ou
Jaguar, e nem por terem nos levado a um chique resort para três dias
de mordomia e 15 minutos de teste entre muitos mimos e conforto. O
prazer veio do carro mesmo, que é efetivamente legal, desses que nos
fazem nos exclamar "ohhhhhhhh" quando chega a hora de estacionar,
assim como faz a plateia do Jô Soares quando os bons entrevistados se
despedem.
Citroën DS3 é o nome da pequena maravilha, causadora de bons
sentimentos e sensações especiais em folgada maioria dos jornalistas
que comigo tiveram a chance de dirigi-lo por cerca de duas centenas de
quilômetros, inclusive com direito a muitas voltas rápidas em um
kartódromo.
É um carro destinado a poucos e bons (de bolso): R$ 79.900 para um
compacto esportivo não é preço exagerado, mas não é pouco. A previsão
de venda da Citroën é de 250 exemplares ao mês, 0,1% ou menos do que é
absorvido de automóveis por esse Brasilzão a cada 30 dias. Todavia,
mesmo "de nicho", mesmo destinado a uma fatia ínfima de gente, mexeu
com os corações e mentes da galera de "especializados" — nós, que
temos a honra de sermos lidos por vocês e... ganhar a vida com isso! E
agora, tento explicar alguns porquês. |
Sedutor
Primeira razão: o prazer.
Ah, o prazer... sem ele não existiríamos! Ou você acha que a
humanidade foi formada por uma maioria de procriadores por dever? E
sendo o prazer que move o mundo, o DS3 é uma espécie de mola
propulsora, verdadeira fonte de prazer automobilístico. Para começar,
ele "veste" bem. Ninguém que realmente goste de automóveis poderá
afirmar que não sentiu aconchego ao volante desse pequeno Citroên. Um
carro excitante, sedutor.
A receita: 165 cv, pouco mais de uma tonelada, baixinho, largo, curto,
plantado no solo... Até mesmo quem não valoriza a direção esportiva,
preferindo a maciez de grandes sedãs ou a imponência de
estratosféricos utilitários esporte, se sentirá emulado a dar uma
aceleradinha a mais, a "chamar" o volante para sentir o carrinho
agarrado no asfalto. Um grande T...
Segunda razão: a lógica.
Muita emoção? Então vamos à razão: motor pequeno, 1,6 litro, injeção
direta e sobrealimentado por um pequeno turbocompressor, caixa manual
de seis marchas, direção eletroassistida, controles eletrônicos
rituais — ESP, BAS, ASR... Ou seja, a modernidade. O resultado de tudo
isso é eficiência, capacidade de percorrer 15 ou 16 km/l mantendo
nossos regulamentares 120 km/h na estrada, e com ar ligado. Que tal?
Insonorização ótima. A lógica de quem gosta de boa engenharia aplicada
a automóveis se sente acarinhada pelo DS3.
Terceira razão: a arte.
"Um povo sem arte é um povo triste". Essa frase deve ter sido dita por
alguém famoso, mas, se não foi dita, deveria ter sido. O que seria de
nós se todos os carros fossem parecidos com um Trabant? Beleza em
automóvel, como em mulher — que me desculpem os feios e as feias —, é
fundamental (e essa frase, sim, eu e você sabemos quem disse...). O
DS3 é o tipo de carro que não precisa ser amarelo ovo ou roxo listrado
de laranja para atrair olhares de admiração.
Que uma mocinha de 16 ou 58 anos, ou mesmo um mal-encarado marmanjo,
vire o pescoço a sua passagem pouco se dá, mas quando crianças se
viram e apontam para o carro confirma-se que, sim, o DS3 tem carisma
estético. E até quem odeia a marca, o tipo de carro ou a proposta vai
se roer de vontade de ter um.
Eu poderia passar da dezena de razões para exaltar a "petite merveille"
da marca francesa, mas me contento com esse válido trio de
justificativas feito de prazer, lógica e arte para transmitir meu
recado quinzenal aqui no Best Cars. E creiam que ao decidir
externar uma ode a esse pequeno carro me enchi de coragem, pois manda
o bom senso que nós, que ganhamos para fazer o que fazemos (mas talvez
devêssemos pagar...), temos de manter uma fleuma, um ar blasè ou
contrito, não externando empolgações baratas, sob risco de parecermos
ingênuos e influenciáveis ou, pior, vendidos.
Mas quem me deu o empurrão para arriscar tem cacife: foram vocês,
leitores, por meio de quatro dezenas de comentários feitos sobre a
avaliação do DS3, publicada
na quinta-feira, que elevaram o carrinho a objeto do desejo de
esmagadora e emocionada maioria.
O carro é visto por alguns como mero meio de transporte, nocivo
causador de males, problemas e afins. Mas, para mim e para esses 40
que se dignaram a comentar o artigo, carros como o DS3 explicam nossa
paixão pura e simples por automóveis, decorrente de capacidade que não
está ao alcance de todos: de se emocionar e admirar um complexo
conjunto de peças de plástico, metal, fibras e tecidos chamado
"automóvel". |
Até mesmo quem
não valoriza a direção esportiva se sentirá emulado a dar uma
aceleradinha a mais, a "chamar" o volante para sentir o carrinho
agarrado no asfalto |