Data de publicação: 12/5/12

Parecer honesta

Se os carros não enferrujam mais como o Fusca do Piero, isso
não significa boa qualidade para os modelos de entrada

por Roberto Agresti

O Volkswagen sedã 1500 que meu pai comprou no começo dos anos 70 quebrou paradigmas na minha então jovem mente. A chegada em casa de um Fusca — que, diferente de todos os outros, tinha um painel de jacarandá — “causou”! Certo, não era madeira de verdade, mas parecia, e em conjunto com o revestimento dos bancos em um raro marrom café dava a aquele carro branco, não à toa apelidado de Fuscão, um ar de requinte. Até mesmo uns vizinhos vieram olhar o Volkswagen que, em vez de ter o painel de lata na cor da carroceria, tinha uma imitação de madeira — chique que só, em especial aos olhos de uma criança.

A outra coisa que me lembro daquele Fuscão é que ele enferrujou com uma velocidade impressionante, e ferrugem daquela que nasce com uma bolha na pintura de um dia para outro. Eu ainda estava a alguns anos de entrar na adolescência, mas já sabia o que era acne, e imaginava que o Fuscão tinha doença parecida.

A podridão nascia em todo lugar: no meio do teto, no capô, nos para-lamas, mas era em especial nas calhas que ela galopava. Dois anos depois meu pai vendeu o carro, podrão, e comprou um Chevette, que foi algo melhor em termos de ferrugem, mas não muito.

Toda essa conversa de tempos passados é para falar de acabamento, de qualidade, coisa que nos carros de hoje apresenta altos — e muito mais baixos do que se poderia imaginar.

Certeza número 1: a lataria não apodrece mais. Descobriram (ou aplicaram) tratamentos de chapa adequados, e ferrugem perfurante é problema que está restrito aos antigomobilistas. Viva!

Certeza número 2: a popularização do automóvel, a oferta de muitos modelos, dos muito simples aos tremendamente sofisticados, cresceu barbaramente.

Certeza número 3: os carros caros estão maravilhosos; já os mais em conta, ruins de doer, e me refiro aqui sobretudo a acabamento e cuidado construtivo, não a projeto e tecnologia aplicada.

O relato que fiz acima, sobre o Fuscão do Piero, tem a ver com um aspecto que pode ser chamado de “percepção de qualidade”. Antes de enferrujar, aquele simples Volkswagen era especial, dava ao velho uma sensação de ter feito um grande negócio. Se comparado ao mais manjado Fusca 1300, sem o jacarandá no painel, de bitola traseira estreita e motor mais fraco, oferecia realmente algo mais, em uma época em que a distância entre o carro mais caro e o mais barato do mercado não era como atualmente, do Everest às Fossas Marianas.

Decadência
Quarenta anos passaram e, com mais ou menos a mesma idade que meu pai tinha naquela época, essa tal percepção de qualidade foi tudo o que não percebi agora ao conviver por um mês com o novo Palio, em versão Attractive e recheada de opcionais, em tese um carro bem-equipado — e nada barato em seus R$ 44 mil.

Bem-equipado, mas não caprichado. E até mal feito. Tive Fiats, muitos, do 147 ao Doblò, passando por Unos (vários), Elbas (várias), Tipos (dois), Palio, picapes Fiorino e até uma Marea Weekend. Versões variadas, ora as mais equipadas, ora as mais peladas, mas decentes. Mas o novo Palio me frustrou.

Verificar que houve involução em termos de qualidade de materiais e acabamento de um modo geral — lembrem que não estou abordando projeto e tecnologia — face ao mesmo modelo anterior é algo ao alcance de qualquer um. Não é preciso ser um expert em carros, tampouco ter uma vasta cultura e/ou experiência com automóveis, para notar que o departamento que corta custos trabalhou diligentemente para alinhar o Palio aos novos tempos. Sim, pois a assinalada decadência não é só da Fiat e seu novo carro, mas extensiva ao segmento de um modo geral.

Hoje, como já mencionado, há mais ofertas e a distância entre os luxuosos e os simples é mais marcante. Nos modelos de topo, acabamento e materiais são ótimos, sem miséria, mas na turma dos andares mais baixos, onde está esse novo Palio junto com Sanderos, Celtas, Agiles, Gols e outros, a ordem é... tirar o jacarandá do painel!

Simplicidade não é pecado, mas não me parece que a redução de qualidade, a restrição a luxos ou mimos, esteja sendo seguida por um barateamento dos veículos que, pelo que vejo, estão sempre custando mais. Há menos de 20 anos surgiu o “carro popular”, que custava o equivalente a 7 mil dólares em nossos dinheiros. Isso, hoje, é igual a pouco menos de 14 mil reais. Qual carro nacional zero-quilômetro custa isso?

Qual era a mágica para oferecer algo simples, mas novo, por tão pouco? Incorporar tecnologia custa tanto assim a ponto de duplicar o preço em menos de duas décadas? Será que os carros que substituíram aqueles são tão melhores assim em termos de segurança e desempenho? E um deles ainda está em produção, o Fiat Mille, malvadamente batizado de “Economy” e custando o equivalente a 12.500 dólares.

Uma boa notícia desse Palio novo é saber que todos, com motor de 1,4 litro para cima, vêm com bolsas infláveis e freios com sistema antitravamento (ABS), gostem ou não seus clientes. Mas tal aperfeiçoamento técnico poderia vir acompanhado de um capricho que reafirmo estar ausente dele e de seus pares, os modelos mais simples à venda em nosso mercado.

À evidente constatação de perda da percepção de qualidade, gostaria de imaginar a reação: uma latente repulsa a novidades que ofereçam menos por mais, nascidas pelas mãos do cada vez mais poderoso “departamento de depenação”, os maus, os que colocam a perder o bom trabalho de engenheiros e técnicos que gastaram horas para encontrar boas e belas soluções engavetadas em nome do lucro.

Indústria automobilística não é filantropia, demanda ganho de capital para gerar riqueza e investimento em novos produtos. Mas eles não podem ser piores, e tampouco parecer piores. Devem ser como a mulher de César, à qual não basta ser honesta: deve parecer honesta também.

A tal percepção de qualidade foi tudo o que não percebi ao conviver com o novo Palio, um carro bem-equipado — e nada barato
 
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