O Volkswagen sedã
1500 que meu pai comprou no começo dos anos 70 quebrou paradigmas na
minha então jovem mente. A chegada em casa de um Fusca — que,
diferente de todos os outros, tinha um painel de jacarandá —
“causou”! Certo, não era madeira de verdade, mas parecia, e em
conjunto com o revestimento dos bancos em um raro marrom café dava a
aquele carro branco, não à toa apelidado de Fuscão, um ar de
requinte. Até mesmo uns vizinhos vieram olhar o Volkswagen que, em
vez de ter o painel de lata na cor da carroceria, tinha uma imitação
de madeira — chique que só, em especial aos olhos de uma criança.
A outra coisa que me lembro daquele Fuscão é que ele enferrujou com
uma velocidade impressionante, e ferrugem daquela que nasce com uma
bolha na pintura de um dia para outro. Eu ainda estava a alguns anos
de entrar na adolescência, mas já sabia o que era acne, e imaginava
que o Fuscão tinha doença parecida.
A podridão nascia em todo lugar: no meio do teto, no capô, nos
para-lamas, mas era em especial nas calhas que ela galopava. Dois
anos depois meu pai vendeu o carro, podrão, e comprou um Chevette,
que foi algo melhor em termos de ferrugem, mas não muito.
Toda essa conversa de tempos passados é para falar de acabamento, de
qualidade, coisa que nos carros de hoje apresenta altos — e muito
mais baixos do que se poderia imaginar.
Certeza número 1: a lataria não apodrece mais. Descobriram (ou
aplicaram) tratamentos de chapa adequados, e ferrugem perfurante é
problema que está restrito aos antigomobilistas. Viva!
Certeza número 2: a popularização do automóvel, a oferta de muitos
modelos, dos muito simples aos tremendamente sofisticados, cresceu
barbaramente.
Certeza número 3: os carros caros estão maravilhosos; já os mais em
conta, ruins de doer, e me refiro aqui sobretudo a acabamento e
cuidado construtivo, não a projeto e tecnologia aplicada.
O relato que fiz acima, sobre o Fuscão do Piero, tem a ver com um
aspecto que pode ser chamado de “percepção de qualidade”. Antes de
enferrujar, aquele simples Volkswagen era especial, dava ao velho
uma sensação de ter feito um grande negócio. Se comparado ao mais
manjado Fusca 1300, sem o jacarandá no painel, de bitola traseira
estreita e motor mais fraco, oferecia realmente algo mais, em uma
época em que a distância entre o carro mais caro e o mais barato do
mercado não era como atualmente, do Everest às Fossas Marianas. |
Decadência
Quarenta anos passaram e, com mais ou menos a mesma idade que
meu pai tinha naquela época, essa tal percepção de qualidade foi
tudo o que não percebi agora ao conviver por um mês com o novo
Palio, em versão Attractive e recheada de opcionais, em tese um
carro bem-equipado — e nada barato em seus R$ 44 mil.
Bem-equipado, mas não caprichado. E até mal feito. Tive Fiats,
muitos, do 147 ao Doblò, passando por Unos (vários), Elbas (várias),
Tipos (dois), Palio, picapes Fiorino e até uma Marea Weekend.
Versões variadas, ora as mais equipadas, ora as mais peladas, mas
decentes. Mas o novo Palio me frustrou.
Verificar que houve involução em termos de qualidade de materiais e
acabamento de um modo geral — lembrem que não estou abordando
projeto e tecnologia — face ao mesmo modelo anterior é algo ao
alcance de qualquer um. Não é preciso ser um expert em carros,
tampouco ter uma vasta cultura e/ou experiência com automóveis, para
notar que o departamento que corta custos trabalhou diligentemente
para alinhar o Palio aos novos tempos. Sim, pois a assinalada
decadência não é só da Fiat e seu novo carro, mas extensiva ao
segmento de um modo geral.
Hoje, como já mencionado, há mais ofertas e a distância entre os
luxuosos e os simples é mais marcante. Nos modelos de topo,
acabamento e materiais são ótimos, sem miséria, mas na turma dos
andares mais baixos, onde está esse novo Palio junto com Sanderos,
Celtas, Agiles, Gols e outros, a ordem é... tirar o jacarandá do
painel!
Simplicidade não é pecado, mas não me parece que a redução de
qualidade, a restrição a luxos ou mimos, esteja sendo seguida por um
barateamento dos veículos que, pelo que vejo, estão sempre custando
mais. Há menos de 20 anos surgiu o “carro popular”, que custava o
equivalente a 7 mil dólares em nossos dinheiros. Isso, hoje, é igual
a pouco menos de 14 mil reais. Qual carro nacional zero-quilômetro
custa isso?
Qual era a mágica para oferecer algo simples, mas novo, por tão
pouco? Incorporar tecnologia custa tanto assim a ponto de duplicar o
preço em menos de duas décadas? Será que os carros que substituíram
aqueles são tão melhores assim em termos de segurança e desempenho?
E um deles ainda está em produção, o Fiat Mille, malvadamente
batizado de “Economy” e custando o equivalente a 12.500 dólares.
Uma boa notícia desse Palio novo é saber que todos, com motor de 1,4
litro para cima, vêm com bolsas infláveis e freios com sistema
antitravamento (ABS), gostem ou não seus clientes. Mas tal
aperfeiçoamento técnico poderia vir acompanhado de um capricho que
reafirmo estar ausente dele e de seus pares, os modelos mais simples
à venda em nosso mercado.
À evidente constatação de perda da percepção de qualidade, gostaria
de imaginar a reação: uma latente repulsa a novidades que ofereçam
menos por mais, nascidas pelas mãos do cada vez mais poderoso
“departamento de depenação”, os maus, os que colocam a perder o bom
trabalho de engenheiros e técnicos que gastaram horas para encontrar
boas e belas soluções engavetadas em nome do lucro.
Indústria automobilística não é filantropia, demanda ganho de
capital para gerar riqueza e investimento em novos produtos. Mas
eles não podem ser piores, e tampouco parecer piores. Devem ser como
a mulher de César, à qual não basta ser honesta: deve parecer
honesta também. |
A tal percepção
de qualidade foi tudo o que não percebi ao conviver com o novo
Palio, um carro bem-equipado — e nada barato |