No comecinho dos
anos 70 instalaram grades cercando o Parque da Aclimação, em São
Paulo, para evitar que à noite o local virasse um bordel a céu
aberto. Se para uns (e outras) tal iniciativa foi detestável, para
minha turminha do bairro o tempo que durou a tal reforma foi uma
festa. Para a molecada, ali pelos 10 ou 11 anos, o que acontecia
assim que o sol se punha entre as árvores ainda não interessava para
nós — mas andar de bicicleta ali, sim, e muito.
Com as obras o Parque ficou parecendo um cenário de bombardeio:
montes de terra cá e lá, crateras, pedras, terra revirada para todo
lado. Logo virou pista de bicicross, antes mesmo que alguém tivesse
ouvido falar essa palavra. Não sabíamos ainda que pular barrancos de
bicicleta era ou viria a ser um esporte, mas achávamos aquilo tudo
muito divertido. Outra modalidade que "inventamos" ali, e que depois
ganhou notoriedade, é o downhill: alinhavamos no topo da mais
íngreme pirambeira do parque e... adeus, descida abaixo! O mais
divertido era o prêmio por não cair no meio do percurso: mergulhar
no lago com bicicleta é tudo.
Esse era o lado fora-de-estrada de nossas estripulias ao guidão, mas
havia também as artes no asfalto dessa fase pedal, pré-motor, e bem
mais perigosas. A maior delas era sair pela cidade nas noites de
sábado, e o roteiro favorito seguia pela Av. Paulista chegando até a
Rua Augusta, de onde despencávamos para o lado dos Jardins.
Interpretem o termo "despencar" não como força de expressão, mas sim
literalmente. Inspirados pelo velho hit "desci a rua Augusta a 120
por hora...", frear, só em último caso.
Nos cruzamentos, o sinal vermelho ou verde nada significava para o
bando de quase uma dezena de camicazes, que contavam com gritos para
alertar pedestres e motoristas e com o anjo da guarda para voltar
são e salvos para casa. Detalhe significativo era minha bicicleta de
então (período pré-Caloi 10, sonho de consumo dos anos seguintes):
uma Goricke aro 24, aliviada da pesada traquitana que eram os freios
por varão. Para diminuir a velocidade, costumava colocar o pé entre
o quadro e o pneu traseiro, e consumia um Bamba ou Kichute por
semana. Aviso aos mais jovens que Bamba e Kichute eram marcas dos
tênis mais populares então.
Terminada a alucinante descida da Augusta, seguíamos (quase)
comportados até o Pandoro, um bar da moda, onde à porta estacionavam
as melhores motos e carros de São Paulo. E lá ficávamos babando o
ovo, imaginando o dia em que teríamos grana para largar a bicicleta
por algo reluzente — e com motor. |
Escolher o
trajeto
Quarenta anos depois, tenho algumas certezas. Primeira delas é
sobre o profissionalismo e a competência de meu anjo da guarda,
ainda hoje muito prestativo, pois apesar dos 50-e-passa ainda não
dei moleza para ele. Outra é que sinto que há algo de muito estranho
nessa gritaria dos ditos "cicloativistas" quando ocorrem acidentes
envolvendo veículos a motor e bicicletas na capital paulista —
infelizmente, cada vez mais frequentes.
Por mais insano que tenha sido em minha adolescência — e acreditem
que fui bastante —, eu e minha turma (gangue?) da Aclimação sabíamos
que andar de bicicleta, em especial na Paulista ou Augusta, era um
negócio bem perigoso. E, até por conta disso (ou principalmente por
isso...), muitíssimo divertido. Não havia então lanterninhas
vermelhas piscantes para aplicar na bicicleta e sinalizar nossa
existência. Capacete? Nem pensar, assim como a consciência que usar
roupa clara ajudaria a nos enxergarem. Nada disso.
Certamente naquele tempo São Paulo era mais amena do que nos dias
atuais em termos de trânsito, mas nem por isso deixava de ser uma
grande metrópole, ou seja, local onde andar de bicicleta deve ser
algo circunscrito a vias de trânsito mais calmo, ruas de bairro, e
mesmo assim com cuidado extremo. Escolher o trajeto de acordo com o
veículo que estou usando é algo que faço até hoje, e o exemplo é que
evito trafegar nas Marginais de moto sempre que posso.
Aliás, é frequente que eu escolha uma moto ou um scooter como vetor
no caos paulistano e sei bem que, quanto menor é a moto que tenho
nas mãos, mais ágil ela é, mas menos visível também. Com frequência
cada vez maior, parado em um sinal de trânsito (na Paulista, ou
Augusta), tomo um susto: passam por mim ciclistas, homens e
mulheres, plenamente paramentados com capacete, luzinhas, colete
reflexivo e o que mais houver, mas que — como eu fazia há 40 anos —
ignoram completamente o semáforo.
Pois é, raros são os ciclistas que respeitam as regras de trânsito.
Aliás, extrapolo: raros são os motociclistas que o fazem, e os
motoristas de carros, caminhões e ônibus também. Ninguém respeita
nada, ou quase nada, a menos que perceba uma grande probabilidade de
ser multado pela infração. Essa é a regra entre nós, infelizmente.
Posto isso, e apesar de concordar que há carros demais, fumaça
demais, congestionamento demais e estresse demais na minha cidade e
no mundo, não compactuo com a atitude dos xiitas da bicicleta, que
pleiteiam uma improvável preferência por parte dos outros usuários
das vias públicas paulistanas.
Cidade criada sem nenhum planejamento, que "foi indo" e "continua
indo" periferia afora, derrubando matas seculares, invadindo áreas
de mananciais e outros crimes ambientais do gênero, São Paulo não é
Amsterdã, Toronto, Paris, nem mesmo Buenos Aires. Tem muito mais
gente que as citadas e não há como incutir, de um minuto para outro,
uma tão radical mudança da matriz do transporte individual. Por "n"
razões, a cidade é hostil ao uso da bicicleta, pois tanto faltam as
necessárias ciclovias como perfil topográfico adequado. E, pior de
tudo isso, há o já mencionado habitante selvagem, que faz da
agressividade e do desrespeito às leis de trânsito o padrão vigente.
Ciclistas também inclusos nisso.
A cada vez mais comum cena do ciclista totalmente paramentado,
pedalando em uma faixa de rolamento de uma grande avenida
paulistana, está se tornando comum — e bizarra, pois desconsidera a
realidade vigente. A uma compreensível e elogiável defesa do
transporte amigo do meio ambiente, há que se aliar medidas de bom
senso, e atualmente em São Paulo escolher caminhos mais calmos para
ir do ponto A ao B é a principal delas. |
Há algo de muito
estranho nessa gritaria dos ditos "cicloativistas" quando ocorrem
acidentes, cada vez mais frequentes |