Data de publicação: 18/2/12

Tristes alegorias

Quando os "artistas" envolvidos não ensaiam direito, o show é
o que é: um carnaval de muitas perdas nas ruas e estradas

por Roberto Agresti

O pesadelo de se envolver em um acidente de trânsito é dos mais recorrentes, e pior ainda para quem frequenta vias expressas ou rodovias, onde a velocidade potencializa danos. Uma coisa é bater no cruzamento da rua de bairro a 20 km/h; bem outra é ser abalroado e sair capotando a 80, 100 ou 120 km/h.

Nosso trânsito é tristemente famoso por ser um recordista em acidentes e, claro, em vítimas. Cada deslocamento bem-sucedido que fazemos, de forma tranquila, sem estresse nem susto, parece um prêmio, uma sorte, como se tivéssemos acertado na loteria. Mas essa consciência do risco é atenuada com o hábito, a rotina. Estar diariamente dirigindo no "campo de batalha" de uma grande metrópole ou nas rodovias nos anestesia quanto ao perigo, nos faz achar quase normal a guerra sobre rodas.

Um pequeno período de férias no exterior, em ambientes de trânsito mais ordenado e organizado, como na Europa ou Estados Unidos, basta para, na volta, nos darmos conta de como aqui a coisa é feia. Mas tal experiência catequizante não está ao alcance de todos e mesmo os "ungidos" logo voltam ao velho estilo Mad Max...

O brasileiríssimo carnaval em andamento nos brindará com notícias de mais acidentes, recordes sinistros. Culpados não deixarão de ser apontados: o álcool, a chuva, a má estrada, a falta de educação, a escassez de fiscalização e, sobretudo, a leniência de muitos com a responsabilidade que é conduzir um veículo e mantê-lo adequadamente.

No Brasil, os três "artistas" envolvidos nesse triste e manjado espetáculo não ensaiam direito, e assim o show é aquele que é. O primeiro artista fuleiro é a pavimentação — estrada ou rua —, que é um verdadeiro crime na maioria das vias. O segundo vagabundo é o carro, infelizmente abaixo do que deveria se exigir em termos de segurança em pleno século 21. E por fim, último mas não menos importante, vem o grande palhaço sem graça: nós, os humanos que comandam máquinas de modo aproximativo e irresponsável.

Quero crer que já foi pior, mas não estou muito convencido. Imagino, por exemplo, que a cidade de São Paulo, onde nasci e vivo, tinha muitas ruas calçadas de paralelepípedo, escorregadio como sabão quando molhado, e perigoso. Lembro-me também daqueles carrões norte-americanos de minha infância, enormes, pesados, com aqueles pneus fininhos, freios a tambor e direções com folgas gigantescas. Lembro também a Via Dutra, estreita, com acostamento ruim, sem sinalização, cheia de buracos. Todavia, havia muito menos carros, menos velocidade, menos pressa e, em consequência, menos acidentes.

Andamos para frente em alguns pontos, eliminando pisos perigosos e melhorando um pouco os carros, que hoje têm mais segurança ativa — fazem curvas bem melhor, param em espaços menores, pneus e freios raramente deixam de cumprir sua função de repente — e passiva — machucam menos quem está dentro por conta de estruturas que absorvem a energia do impacto e dos importantes adereços como bolsas infláveis e cintos de segurança de três pontos. Mas e nós, os "palhaços", estamos fazendo o quê? Dirigindo melhor? Hummm... Sei, não.

Faca de dois gumes
Há uma banalização do ato de dirigir. É quase como o carnaval: pode tudo, podem todos! Antes, muito antes, quero dizer — 30, 40 ou 50 anos atrás —, ter um carro não era algo corriqueiro, estendido à grande maioria. Hoje é possível dizer que "só não cai nesse samba quem não quer", e não há dúvida de que a democratização do transporte individual é conquista social importante. Mas é uma faca de dois gumes.

A essa altura da conversa, seria fácil demais apontar o dedo acusatório desse violento estado de coisas para a mal ensaiada escola de samba formada pela massa de motoristas brasileiros que sai das autoescolas. Mas vou por outro lado, atravessando o samba: para o lado de nossa consciência ou, melhor dizendo, da falta dela.

O Estado tem deveres para com o cidadão, claro, entre os quais são óbvios oferecer segurança (ruas boas, estradas boas, leis boas...) e exigir que quem tenha atividade ligada a meios de transporte (treinar e avaliar motoristas, construir pistas, produzir e vender carros...) cumpra suas tarefas em elevado nível. Já ao cidadão cabe... a cidadania. É dever do bloco dos palhaços — nós — interpretar bem seu papel nesse carnaval que é a vida, fazendo graça e não desgraça.

Demanda básica da vida em sociedade é cumprir regras de convívio, das mais simples às mais complexas. Assumir um volante ou guidão, se deslocar do ponto A ao B, muitas vezes levando passageiros, não é algo que pode ser tomado como atividade simples — apesar de simplista ser a operação da máquina, cada vez mais amigável e, como dito, ao alcance de muitos.

Todos nós somos submetidos a campanhas que tentam nos incutir o conceito de que a violência no trânsito deve ser evitada e combatida. O que vemos, porém, é a escalada inexorável dos maus índices, o progresso da tragédia, a epidemia que mata mais que as duas Grandes Guerras e a Gripe Espanhola juntas. Falta atitude ao bloco dos palhaços sem graça, que devem parar de fazer palhaçada, ao menos ao volante, e serem sérios e compenetrados.

Responsáveis, enfim, como gostaríamos que fossem os pilotos dos aviões de carreira — aqueles de quem quase nunca vemos a cara, mas aos quais confiamos nosso destino ao afivelar o cinto para viajar rumo aonde quer que seja. Exigimos que o comandante, lá na cabine, jamais ouse, jamais arisque. E o mesmo deveríamos fazer nós ao volante, guidão ou timão de qualquer coisa com motor da qual, quando vestimos, viramos comandantes.

Palhaço que sou, humano como vocês, arrisco mais do que devo, confio mais em mim e em quem me cerca no trânsito do que seria lícito. Imagino que minha experiência, habilidade, sorte ou o equipamento que guio me franqueie sorte e direitos que, de fato, não tenho. E sobrevém uma certeza: a de que esse enorme problema que é nosso violentíssimo trânsito só começará a mudar, de fato, quando cada um de nós mudar de fantasia.

Bom carnaval.

Há uma banalização do ato de dirigir. É quase como o carnaval: pode tudo, podem todos!
   
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