O
português da padaria é um sábio. Conhece seu negócio e sabe que a base
de seu sucesso está na satisfação de seu cliente. Sorri mesmo quando
não tem vontade, atende mesmo quando quer fechar e ir para casa, se
esmera na apresentação de seus produtos e, é claro, na qualidade
deles, pois sabe que seu freguês só será "seu freguês" enquanto
estiver plenamente satisfeito. Se um dia o tal freguês não gostar de
algo, seja do pãozinho, dos frios, da cara da balconista ou da menina
do caixa, se manda. E vai buscar em outra padaria o serviço que espera
merecer: o melhor. Tais princípios, tão básicos do comércio, servem
para uma padaria e qualquer outra atividade.
Durante décadas a Volkswagen mandou no mercado brasileiro. Escorada em
um genial produto, o Fusca, se expandiu furiosamente. Oferecia o que o
brasileiro queria e precisava então: um veículo simples, robusto,
confiável e, acima de tudo, passível de ser consertado em qualquer
biboca. Em um Brasil de dimensões continentais e estradas
miseravelmente conservadas, sair do ponto A ao ponto B dentro de um
Fusca era garantia de chegada ao destino, ainda que sem grande
conforto.
O tempo passou, inclusive para o Fusca. Novas demandas de um novo
Brasil fizeram com que a antes poderosa Volkswagen perdesse a
liderança do mercado nacional para a Fiat, a última das ditas "quatro
grandes" da indústria automobilística a se instalar aqui antes da nova
era. Uma era que teve como data de início o governo Collor e a talvez
única coisa boa que ele nos trouxe: a abertura dos portos, a liberação
da importação de automóveis, o fim da reserva de mercado das tais
quatro — Volkswagen, General Motors, Ford e Fiat.
O então risível Fiat 147, carro de excelente projeto e realização
aproximativa na seara de Betim, MG, foi o patriarca dos atuais donos
da bola. Se naquele 1976 — ano de lançamento do pequeno Fiat — alguém
dissesse que, um dia, a marca italiana desbancaria a Volkswagen do
topo, poderia ser colocado em uma camisa de força pelo descalabro da
afirmação. Problemas do 147 inaugural à parte, logo veio o Uno e dele
derivou o Mille, o primeiro a aproveitar o benefício fiscal a modelos
de até 1,0 litro de cilindrada. Aprimorado, ele é, hoje, o que o Fusca
foi: simples, robusto, confiável e, acima de tudo, passível de ser
consertado em qualquer biboca. E depois, o bem-sucedido Palio, sacadas
como a linha Adventure e agora o novo Uno delinearam a definitiva
tomada do castelo Brasil.
Não fez carros ruins a Volkswagen desde o adeus do Fusca, e a prova é
que seu Gol é, desde 1987, o mais vendido dos automóveis. Mas, se em
vez dos alemães que se sucederam no timão da empresa fosse o Manoel a
conduzi-la, e aplicasse o lusitano sua expertise em padarias à empresa
sediada em São Bernardo do Campo, SP, as coisas não teriam ido tão bem
assim para os italianos. E mais: aplico esse mesmo raciocínio à
vizinha da Volkswagen, a Ford, e a aquela empresa de São Caetano do
Sul, a General Motors. Se conduzidas pelo Joaquim e o Antônio, irmão e
cunhado do Manoel, não veriam suas parcelas de mercado despencar do
modo que despencaram.
É evidente que aquela mistura de mau preceito batizada de Autolatina
não ajudou VW e Ford a ganhar mercado e manter a estima de seus
clientes. Bem ao contrário, serviu para mostrar que, quando dirigentes
pensam em aumentar a margem, os lucros, otimizar produção, diminuir
despesas e explorar ao máximo as ditas "sinergias", tendem a esquecer
o óbvio: atender a seu cliente.
Não tenho conhecimento de legiões de fãs de produtos como o VW
Pointer, o Ford Verona, o VW Apollo, o Ford Versailles e demais
subprodutos daquele início dos anos 90. Impossível imaginar que um
cliente da Ford, dono de Galaxies, Mavericks e Corcéis, pudesse achar
graça naqueles híbridos. Idem o cliente VW ao saber que no cofre de
seu carro pulsava um motor CHT da Ford... E perceba que não me refiro
à qualidade de tais carros, mas apenas a seu atrapalhado histórico.
Deu no que deu. |
Como um fliperama
E a GM? Que me desculpem os ainda muitos admiradores do Opala,
icônico carro dos anos 70, que corajosamente entrou nos 80 ainda
sedutor e ousou chegar ao começo dos 90. Em boa parte seu charme se
dava, então, pela falta de opção e pelo contínuo aperfeiçoamento
perpetrado pelos técnicos da Avenida Goiás, histórica sede da GM em
São Caetano. Mas... aquele Diplomata do fim dos 80 e início dos 90, o
que era aquilo? Anacrônico tal uma máquina de fliperama comparada ao
Wii: divertidos, interessantes, charmosos, mas tremendamente
defasados. Dinossauros, representantes de uma era que havia terminado
há muito e que insistiam em sobreviver.
Lembro bem que em 1991, ano anterior à morte do Opalão, passei em uma
revenda Chevrolet e vi um Diplomata exposto, reluzente, preto como a
noite. Entrando nele relembrei o Opala Especial 1972 de minha tia, que
frequentemente "subtraía" para dar umas voltas à revelia da família, e
conclui o óbvio: 20 anos se passaram e o carro era praticamente o
mesmo! Um dia antes, havia andado pela primeira vez em um BMW 325i
que, paradoxalmente, disputava clientes de topo com aquele Chevrolet
"de luxo". O buraco tecnológico entre um e outro era fundo como a
fossa das Marianas...
Sim, GM, Ford e Volkswagen dormiram no ponto. E de certo modo
continuam dormindo. De todas elas talvez seja a Ford a ter acordado
antes, pois foi a que viu sua participação de mercado mergulhar mais
fundo. E em busca do tempo perdido resolveu trazer o que tinha de
melhor lá fora: Ka, Fiesta, motores modernos, Focus. Contudo, como bem
sabe o portuga da padaria, perder clientes é rápido; reconquistá-los
demora.
Quanto à GM, ao fim do Opala, sacou de válidas armas, o excelente (mas
caro) Omega e o Vectra da segunda geração. Todavia, a 20 anos de
distância de tal arroubo de tardia modernização de sua linha, o que se
percebe é que tanto o Omega continuou caro demais — sobretudo após ser
substituído pelo modelo australiano — como o Vectra percorreu o
caminho oposto ao de seus pares alemães. Foi empobrecido e
simplificado no Brasil, enquanto o mercado vicejava e o consumidor
aprendia o que significava tecnologia, eficiência energética através
de motores evoluídos e bom desenho externo e interno.
E aos obscuros anos de decadência, de vendas capengas e de perda de um
enorme patrimônio em prestígio e imagem, vem o Cruze tentar salvar o
que restou, buscar atenuar o estrago feito por Celtas, Agiles e
Montanas, projetos locais que, se comparados aos carros que a GM
oferece fora do Brasil, fazem corar defunto.
Não quero encerrar meu raciocínio sem também apontar os pecados da
líder, que, por ser líder, é a que pecou menos em tese. Há de se
constatar os contínuos furos n'água da marca de Betim na faixa alta do
mercado. Após o discreto sucesso do Tempra — ainda lembrado com
saudade por muitos fãs —, a empresa não soube oferecer a seu cliente
de maior poder aquisitivo produtos com o mesmo saudável registro de
eficiência, economia de exercício, confiabilidade e liquidez que as
famílias Uno e Palio detêm. Marea e Brava antes, Linea e Bravo agora
carecem de um "je ne sais quoi" que os faça deixar de patinar no
segmento que traz prestígio e bons lucros.
Enfim, no rudimentar marketing das padarias, o saquinho do pão com a
frase "servimos bem para servir sempre" é emblema de uma atitude, um
estandarte da consciência de que é o cliente — e não o chefão sentado
em outro fuso horário na matriz, os acionistas ou a cruel busca do
máximo de lucro — o segredo do sucesso de qualquer negócio. |
O Diplomata do
fim dos 80 e início dos 90, o que era aquilo? Um dinossauro,
representante de uma era que havia terminado há muito |