Em
uma das minhas primeiras colunas neste espaço do Best Cars,
escrevi sobre a febre dos utilitários esporte e da incoerência que é
dirigi-los numa cidade de trânsito complicado como São Paulo, onde
vivo. E recentemente lembrei-me disso ao me dirigir — atrasado como
quase sempre — a um compromisso em um restaurante encravado nos
Jardins.
Como disse, estava atrasado e, em que pese a elegância exigida pelo
encontro de negócios, que me fez envergar figurino não habitual —
paletó, camisa social e sapatos —, a previsão de um atraso
monumental e vergonhoso me fez optar pelo ágil scooter. Com ele,
serpenteando pelo trânsito do meio-dia, cheguei em minutos a poucos
metros do restaurante, quando tudo parou.
Estava no trecho mais badalado da Rua Oscar Freire, que por
iniciativa sei lá de quem — lojistas, prefeitura ou, mais
certamente, o conluio de ambos — teve suas calçadas alargadas,
transformando a já estreita via em mais estreita ainda, quase um
calçadão. Nesse local, uma jovem senhora estava atravessada no meio
da rua com seu Hyundai Santa Fe, tentando desentalá-lo:
aparentemente saíra de ré de uma garagem, mas a via estreita e a
inerente má visibilidade do trambolho, somadas à inquestionável
inabilidade da motorista, me obrigaram a me conformar e assistir ao
espetáculo, pois mesmo com um pequeno scooter era impossível passar.
A moça trancou a via, sem dó.
Minutos intermináveis se passaram entre um coro de buzinas e gritos
de "vem, vem, vem... ooops... parô, parô, parô..." dos solícitos
cidadãos que tentavam ajudá-la a sair do constrangimento. Bem, para
dizer a verdade, "constrangimento" não era exatamente o que estava
estampado na face da jovem senhora, ao menos no pouco pedaço de
rosto visível entre óculos escuros e cabelão, mas sim um
brasileiríssimo ar de impávido colosso, tipo "não tô nem aí".
Análises sociais e comportamentais à parte, logo depois tal cena se
esvaiu, e com uma decidida acelerada lá se foi a dama montada em seu
Santa Fe — que apropriado nome! — rumo ao próximo embate entre sua
(in)competência ao volante e o meio ambiente onde circula com seu
pretíssimo e grande utilitário esporte.
Pano rápido e, uma semana depois, me vejo em Miami, Flórida, para o
lançamento do pequeno Fiat
500. Nos Estados Unidos, em seus grandes espaços, suas muitas
freeways e largas ruas e avenidas, nasceu e se desenvolveu de fato a
civilização do automóvel. Em nenhum lugar do planeta a população é
tão dependente do carro e, até por conta das dimensões gigantes do
país, carros norte-americanos sempre foram grandes. E o utilitário
esporte, por lá, é uma instituição: arrisco dizer que mais de metade
dos veículos que se veem nas ruas pertence a essa categoria.
Passeando com o pequeno e insólito Fiat por esse cenário, entre
inúmeras reflexões, lembrei-me da entalada da madame na Oscar
Freire, e como seria difícil tal cena se repetir ali em Miami. Até
mesmo nos lotados estacionamentos dos "malls", é claro que o povo de
Obama levou em consideração o histórico dos veículos por lá, dos
longos Bel Airs aos largos Hummers, para demarcar terreno espaçoso
para que eles se movam. E não entalem...
Já aqui, o babado é outro. Organização e planejamento não são traço
forte de nossa sociedade. Além disso, nascemos para o carro há
pouco, e foi o Fusca nosso "carro-guia", no qual talvez a maior
parcela de brasileiros maduros aprendeu a dirigir. E por
consequência, ruas, garagens e estacionamentos em supermercados ou
shopping centers seguem padrões derivados de uma realidade que não
existe mais, ou ao menos está se transformando velozmente.
Para quem pensa em contestar isso, dizendo que carros grandes sempre
existiram entre nós — Galaxie, Veraneio e Rural são alguns exemplos
—, aviso: sim, é verdade, existiram. Mas poucos eram os carros nas
ruas e pequeno o percentual desses grandes na cena urbana dos anos
60, 70 e 80. |
Elefantes e cristais
Em particular, prefiro carros pequenos, mas não desprezo os
avantajados. Aliás, tive um utilitário esporte (Nissan Pathfinder SE
V6 ano 1991) durante bons quatro anos, e o adorava. Mas era o dito
carro de viagem, de fim de semana, e sempre que tinha de usá-lo na
urbe percebia o que significa a expressão "elefante numa loja de
cristais", totalmente inadequado e com grande chance de causar
problemas.
É evidente que nem todos entre vocês, leitores, moram na emaranhada
São Paulo e precisam pensar no próprio veículo sob o ponto de vista
da adequação ao local em que será usado, em vez das próprias
necessidades e do gosto pessoal. É também claro que nem todos podem
ter na garagem mais de um carro ou uma providencial moto ou scooter.
Todavia, imagino que caiba jogar alguma luz sobre essa atávica
tendência ao carro grandão, altão, pretão, usado num ambiente
inadequado e para fins inadequados.
Sim, as qualidades do Santa Fe e congêneres são defensáveis sob
muitos pontos de vista — técnicos, estilísticos e até práticos. Mas
é certo que a jovem senhora da Rua Oscar Freire estaria mais bem
servida naquele instante crítico por um... Fiat 500! E é claro
também que há uma distorção, muito disseminada dentre os compradores
de utilitários esporte, que os veem como mais seguros que um
automóvel, confundindo de maneira pueril sensação de segurança com
segurança de fato. Isso para não falar do fator exibicionista, que
um carro grande e alto sempre favorece.
Já imagino que alguns de vocês dedicarão algum tempo a contestar o
que comento. Mas, como disse acima, só pretendo expor um ponto de
vista e "jogar luz" sobre o que vejo e considero modismo. E que,
como todo modismo, não se justifica com lógica e racionalidade: moda
é moda, e ponto.
Volto aos EUA e seus carrões e avenidões: será capaz o Fiat 500 de,
como pretende a empresa italiana, ganhar os corações dos
norte-americanos, atingir bons índices de vendas e... virar moda?
Criado na origem para ser pequeno, prático, barato e adequado as
estreitas ruas medievais italianas, o
500 do passado (1957-1975)
foi reeditado e, como o New Beetle e o Mini, cresceu em tamanho. Mas
não muito.
É carro de nicho, para dar a seu dono ares de moderno e assim, se
cair na graça dos norte-americanos, não será porque cabe nas vagas,
mas porque é charmosinho e ambientalmente adequado. Seu eventual
sucesso lá se dará na razão inversa do sucesso dos utilitários
esporte no Brasil, dando aos norte-americanos algo de que eles não
precisam, mas que desejam, irracionalmente.
Aqui, na São Paulo onde moro, o Fiat 500 cairia muito bem, ocupando
menos do escasso espaço, entrando e saindo bem das garagens e dando
a muitas pessoas, que não primam pela habilidade de conduzir
veículos, chance de se disfarçarem de competentes, auxiliadas por
praticidade tamanho P.
Mas suponho que não é isso que move o gatilho da maioria das compras
de um carro. Não é a racionalidade, a adequação, o senso comum ou a
consciência social. O "barato" é outro, uma onda que muda ao sabor
dos tempos e determinada por "n" fatores. Moda, talvez, o principal
deles. E bovinismo, outro...
A sorte é que o tempo passa e a moda muda: ando vendo carros brancos
por nossas ruas cinzentas e até alguns vermelhos, amarelos e azuis.
Bom sinal! |
Cabe jogar luz
sobre essa atávica tendência ao carro grandão, altão, pretão, usado
num ambiente inadequado e para fins inadequados |